quarta-feira, 25 de outubro de 2023

A Colação de Grau

Hoje seria um dia especial. Para qualquer pai, a colação de grau de um filho é um dia bastante simbólico. Um cordão umbilical invisível que o unia à infância e à juventude da criança é cortado e o filho encontra-se adulto para sempre. As brincadeiras na piscina, as viagens imaginárias no barco que estava sempre prestes a partir e os filmes de Branca de Neve ficaram irremediavelmente no passado. A partir de agora há um novo futuro e os passos dos formandos vão começar a construir suas próprias estradas.

Encontrava-me numa grande euforia pelo que esperava presenciar dali a poucas horas. Esqueci de informar, chamo-me Melquíades, é um nome estranho eu sei, mas os pais têm essa prerrogativa de escolher os nomes dos pequenos. Quando estava chegando ao meu carro no estacionamento do prédio, escuto um pouco surpreso: - Seu Melquíades, o senhor estacionou o seu carro muito próximo do meu.

Olhei rapidamente e vi que o carro do vizinho é que se encontrava sobre a listra divisória amarela, portanto, a observação dele era um completo absurdo.

- Meu caro, retruquei, acho que o senhor está enganado, seu carro é que avançou na minha garagem.

Enquanto entabulava essa discussão, lembrei-me que em diversas ocasiões já ajudara esse vizinho: levara-o para comprar uma bateria nova, ajudara-o a trocar um pneu e ainda conseguira, certa vez, água destilada para colocar no motor superaquecido. Ajudei-o por ajudar, nada de altruísmo de minha parte. Mas em relação a mim, o seu relacionamento amistoso sempre possuía uma restrição, um senão, um porém, um problema. Eu bem que poderia ter mantido uma distância de segurança, mas não o fiz.  

- Você é um estúpido, acrescentou descontroladamente o vizinho. Eu não conseguia entender perfeitamente aquela agressividade. Pensei que se rebatesse com algum argumento um pouco convincente poderia até ser agredido fisicamente. 

- Vou requer uma reunião para discutirmos a sua insolência, esbravejava o homem completamente transtornado. - Vou lhe expulsar daqui. Tudo era surreal.

Entrei o mais rápido possível no meu carro e saí, deixando o vizinho com o rosto assustador refletindo no retrovisor. Meu ânimo inicial por um importante acontecimento que se aproximava - a colação de grau do meu filho - fora completamente despedaçado por um fato absolutamente singelo. O vizinho sabia que eu não estava errado, sua atitude foi apenas para me maltratar, sabe lá Deus o porquê.

Em direção ao trabalho, quis esquecer, mas a ameaça me perturbara fortemente, pelo menos durante aquele dia. Cheguei chateado no escritório e não consegui concatenar as ideias. Fiquei olhando a folha de papel sobre a mesa como se ela quisesse me avisar que tudo aquilo era pequeno demais: - Você é um idiota!

Saí mais cedo e caminhei em torno da praça central com suas árvores centenárias. As caleches e os coches foram há muito substituídos por carros extremamente modernos. Calaram-se os chicotes, falam agora silenciosamente as placas de silício. - Meu Deus, como passa o tempo!

No anfiteatro lotado, os jovens e familiares acompanhados de suas alegrias ocupavam quase todo o espaço. Sentado no chão, pois não havia mais cadeiras disponíveis, rabisquei um papel para encerrar o dia: - Filho, hoje completa-se um ciclo simbólico na sua vida. Acredito no futuro, apesar dos anos, os seus pesos, tropeços e bocejos.

Eu iria escrever mais alguns parágrafos, mas uma bota chutou para longe a caneta que estava em minha mão. Está bom mesmo assim. Amanhã terei um novo dia de tarefas, vou já para casa dormir.


domingo, 15 de outubro de 2023

Cem anos de Ítalo Calvino

Há 100 anos nascia em Havana, Cuba, Ítalo Calvino, um dos maiores escritores italianos do século XX. Pouco após o seu nascimento, a família retornou para a Itália, uma vez que os pais eram italianos e naquele momento encontravam-se a serviço no país caribenho. Autor de obras importantes como "O Barão nas Árvores", "O Visconde Partido ao Meio", "Se Numa Noite de Inverno um Viajante", "O Cavaleiro Inexistente", "As Cosmicômicas" e "As Cidades Invisíveis", entre outros, Calvino era um mestre na arte dos contos e dos raccontini, continhos ou pequenas histórias. Em uma de suas obras primas, "As cidades invisíveis", por exemplo, Marco Polo vai contando ao grande Kublai Khan como são as cidades do seu grande império. Mas cada descrição de uma cidade, que consome entre uma e duas páginas, é uma descrição completa fechada em si mesma. De certa forma, nessa obra que considero uma das melhores que li do autor italiano, ele coloca em prática os valores que ele acreditava que a literatura do século XX deixaria de legado para a posteridade: a leveza, a rapidez, a visibilidade, a exatidão, a consistência e a multiplicidade (legado esse que foi explorado em outra belíssima obra, "Seis Propostas para o Próximo Milênio"). Quem aceitar o convite de caminhar pelas cidades invisíveis de Calvino, provavelmente ficará preso nas suas armadilhas, ou subirá a um alto pináculo à espera de que um barco passe por ali e o leve a um outro destino. Como na cidade de Tamara: 

"Finalmente, a viagem conduz à cidade de Tamara. Penetra-se por ruas cheias de placas que pendem das paredes. Os olhos não vêem coisas mas figuras de coisas que significam outras coisas: o torquês indica a casa do tiradentes; o jarro, a taberna; as alabardas, o corpo da guarda; a balança, a quitanda. Estátuas e escudos  reproduzem imagens de leões delfins torres estrelas: símbolo de alguma coisa - sabe-se lá o quê - tem como símbolo um leão ou delfim ou torre ou estrela. Outros símbolos advertem aquilo que é proibido em algum lugar - entrar na viela com carroças, urinar atrás do quiosque, pescar com vara na ponte - e aquilo que é permitido - dar de beber às zebras, jogar bocha, incinerar o cadáver dos parentes." 

Certamente muitos textos de qualidade surgirão destacando os aspectos literários de Ítalo Calvino por causa dessa efeméride, e qualquer tentativa que eu fizesse para destacar as qualidades desse escritor seriam irrelevantes e nada acrescentariam (mesmo porque deixo isso aos especialistas). Dessa forma, escrevo apenas sobre a sua participação como membro do Partido Comunista Italiano. Na verdade, Calvino começou sua vida literária como articulista/ jornalista do L'Unità, órgão do PCI. Após alguns anos, o escritor se desliga da agremiação e passa a publicar regularmente em diversos meios impressos da Itália dos meados do século XX, e continua a produzir até a sua morte, em 1985. Em sua carta de despedida, assevera: "Juntamente com muitos camaradas, eu esperava que o Partido Comunista Italiano se colocasse à frente da renovação internacional do comunismo, condenando métodos de exercício do poder que se revelaram infrutíferos e antipopulares, dando impulso à iniciativa de baixo para cima em todos os campos, lançando as bases para uma nova unidade de todos os trabalhadores, e neste fervor criativo reencontrasse o vigor revolucionário e o impacto nas massas." Deixou o partido, mas o seu sonho por justiça e igualdade entre as pessoas continuou inabalável pelo resto de sua vida.



Para encerrar essas brevíssimas linhas, um pequeno trecho de um conto de 1968 denominado 'A Memória do Mundo', no qual o protagonista trabalha numa firma em que ele e os seus camaradas têm a função de anotar todos os fatos relevantes para servir como lembranças de uma humanidade que está prestes a desaparecer. De fatos relevantes ele passa a anotar também algumas insignificâncias e daí, parte para enfeitar a realidade com algumas mentiras. Um pouco da arte de se criar e se reconstruir a realidade: "A mentira só exclui a verdade aparentemente, você sabe que em muitos casos as mentiras - por exemplo, para o psicanalista, as do paciente - são tão ou mais indicativas do que a verdade; e assim será para os que tiverem de interpretar a nossa mensagem. (...) Ouça: a mentira é a verdadeira informação que temos de transmitir. Por isso não quis me proibir um uso discreto da mentira, quando ela não complicava a mensagem, mas, ao contrário, a simplificava. Em especial nas notícias sobre mim mesmo, acreditei-me autorizado a ser pródigo em detalhes não verdadeiros (não creio que isso possa atrapalhar alguém). Por exemplo, minha vida com Ângela: eu a descrevi como gostaria que fosse, uma grande história de amor, em que Ângela e eu aparecemos como dois eternos namorados, felizes em maio a adversidades de todo tipo, apaixonados, fieis". 

sábado, 15 de julho de 2023

Do ladrão honrado à Nietotchka

Os personagens de Dostoiévski são complexos e o lugar comum não diminui a intensidade dessa verdade. Lembro-me imediatamente, por exemplo, do major do presídio da Casa dos Mortos, um tipo altivo, dono de todas as situações, orgulhoso, mal até no limite do sadismo, aparentemente sem nenhum traço de humanidade; mas ao final, despojado de sua farda, mostra-se um pobre coitado, um nada, digno de toda a pena. Mas esse major e outros tipos falarei posteriormente. Quero aqui continuar a resumir obras preliminares do mestre russo.

No conto "O ladrão honrado", o personagem Astáfi Ivânitch relata a história de um ladrão honrado, Emiélia Ilhitch. Este último é uma pessoa que anda pelas sarjetas por causa da bebida. Com pena da situação, Astáfi o aloja em seu quarto e divide com ele o pouco alimento. Entretanto, algum tempo depois, uma calça de Astáfi desaparece e esse tem certeza que foi obra de Emiélia. Envergonhado, Emiélia sai de casa, Astáfi se sente culpado e o procura por diversos lugares. Vários dias depois Emiélia retorna para o quarto de Astáfi, bastante doente, e fica convalescendo na cama próximo ao seu benfeitor. Próximo à sua morte, Emiélia pede que Astáfi venda o seu blusão pois ele não precisará no túmulo. E confessa que foi ele quem roubou as calças. Apesar de tudo, Astáfi fica triste com a partida do homem que dividiu com ela, por alguns dias, o seu quarto de dormir.

Em "A mulher alheia e o homem debaixo da cama" Ivan Andiéivitch é um marido extremamente ciumento. Se há razão ou não para o ciúme, isso não vem ao caso. O certo é que ele persegue a sua mulher por vários locais. Em alguns momentos acredita-se que ela o esteja traindo realmente, em outros parece ser apenas uma neurose. Movido por um sentimento destrutivo, Ivan se vê envolvido numa situação absolutamente absurda. Seguindo as pistas de onde poderia encontrar-se a sua esposa e um amante, ele invade uma casa na certeza de desmascarar os dois. Entretanto, a casa na verdade são de desconhecidos. Ele invade o quarto de uma jovem esposa e ao verificar o terrível engano, tentar dar meia volta para sair do quarto e do apartamento errado. Mas nesse momento o velho marido da jovem adentra a casa e ele, sem saber o que fazer, esconde-se debaixo da cama. Entretanto, para a sua surpresa, lá também já encontrava-se um jovem que também encontra-se no esconderijo. O marido entra tossindo enquanto os dois embaixo da cama começam a travar um diálogo quase surreal. Tudo piora quando o cãozinho da jovem acorda e começa a latir com os intrusos. O velho marido vai verificar o que está acontecendo e nesse momento de confusão o jovem vai embora e fica sob a cama apenas Ivan Andiévitch. Agora, sem culpa no cartório, Ivan vai ter que se explicar.

No conto "Uma árvore de natal e um casamento" um rico casal recebe vários conhecidos para um baile infantil na época do natal. Destaca-se entre os convidados um importante funcionário, Iulian Mostakóvitch, que descobre que a jovem filha do casal possui um rico dote que a acompanhará após o casamento. Cinco anos depois ocorre o casamento do senhor Iulian com a jovem filha do casal, agora com dezesseis anos de idade.

Na novela "Noites brancas" um jovem se apaixona por uma bela moça que por sua vez está há um ano à espera do seu amor que partiu numa viagem e prometeu voltar. Como na obra anterior 'A dona da casa', o protagonista se encontra envolvido emocionalmente com uma mulher que não poderá lhe dar a atenção que ele necessita. Isso trará uma tristeza duradoura a ele, embora ele reconheça que os poucos momentos de atenção, na verdade, "um momento de felicidade, não será bastante para preencher uma vida?" Quando percebe que esse momento único é irrepetível, as cores acinzentadas do mundo voltam a ter destaque em sua vista: "Vi empalidecerem as cores das paredes, descobri novas teias de aranha em todos os cantos. Não sei por que, quando relanceei a vista através da janela, pareceu-me que o prédio fronteiro também envelhecera e que se tinha posto mais escuro e arruinado, que o estuque da pilastras estava todo gretado, que as cornijas se fendiam e enegreciam, e que as janelas estavam cheias de manchas e de sujidade."

A obra "Nietotchka Niezvanova" trata da história de uma órfã cuja mãe casou-se com um músico fracassado, Iefímov, presunçoso, orgulhoso, dono de um inútil amor-próprio, que se sentia um gênio - pelo menos durante a sua mocidade. A informação sobre essas características foram passadas à protagonista por um antigo amigo de seu padrasto, o violonista B***, que por sua vez, conhecias as sua próprias limitações: "E quando agora a pureza da minha execução e o aperfeiçoamento da minha técnica chamam a atenção, posso dizer que apenas as devo ao meu estudo perseverante e incansável, ao pleno conhecimento, quero dizer, à apreciação objetiva das minhas faculdades, à minha renúncia espontânea e ao meu constante combate à vaidade e à preguiça, satisfazendo-me com as minhas próprias possibilidades". Nietotchka passa a infância acreditando que o músico fracassado é o seu pai. Ela tem um carinho e uma admiração muito especial ao pai adotivo, e acha que sua mãe é a causa da miséria da família, embora a indisposição do pai ao trabalho devido à sua irascibilidade e o vício com a bebida devessem ser considerados os principais fatores da situação da família. Nietotchka, na verdade, tinha um apego tão grande ao pai que, segundo as sua próprias palavras, tinha qualquer coisa de romance. Mas apesar disso, o pai a obrigava a roubar os poucos copeques e rublos da mãe. "Mas ele estava esperançoso em obter o dinheiro por meu intermédio. Vejo agora que, por ele, eu estava disposta a tudo e que não recuaria diante de nada deste mundo. Mas só Deus sabe o que este 'tudo' significava então para mim. Eu sabia o que aquele dinheiro significava para a minha pobre mãe; sabia que ela podia cair doente de comoção e inquietação se se visse sem ele e escutava no meu íntimo a voz do remorso. Ele, pelo contrário, não via nada disso". Após algum tempo o pai adotivo e a mãe de Nietotchka morrem e ela vai morar na casa de um príncipe. Lá ela conhece a princezinha Kátia que tem mais ou menos a mesma idade. Depois de algum desentendimento, elas finalmente se tornam amigas e passam a ficar o dia juntas, se abraçando e se beijando dezenas de vezes, num amor inexplicável que nasce entre as duas. Mas a mãe da princezinha ao saber disso, a leva de Petersburgo para Moscou e a deixa lá por vários anos. Nietotchka vai morar com a irmã mais velha de Kátia, Alieksandra Mikháilovna, fruto de um antigo casamento da mãe de Kátia. Alieksandra trata Nietotchka como a uma filha. Essa última percebe que Alieksandra não é feliz com o seu marido Piotr, e que há um grande segredo na vida deles. Nietotchka tem momentos de tristeza e de alegrias até descobrir uma carta escondida num livro da biblioteca, que parece dar uma pista sobre esse segredo. Quando Piotr descobre Nietotchka na sua biblioteca e com uma carta de amor em suas mãos - nessa época ela já tinha dezessete anos - começa uma grande confusão envolvendo também Alieksandra. Nesse ponto a história acaba; claramente é um romance inacabado. É uma pena que nunca saberemos qual é esse segredo.

domingo, 2 de abril de 2023

Um rio chamado Titas

"Por causa de seus próprios erros/ Você perdeu tudo/ A quem você vai culpar por esta dor?/ Minha querida, não chore mais".

Vivendo em uma vila às margens do rio Titas, em uma comunidade que se encontra entre a extrema pobreza e a miséria, a jovem viúva Basanti (Rosy Samad) representa a sobrevivência e a resistência à exploração secular experimentada por famílias de humildes pescadores.


O filme "Um rio chamado Titas", foi dirigido por Ritwik Ghatak (Índia/Bangladesh, 1973) tendo sido recuperado pelo The Film Foundation, no World Cinema Project, de Martin Scorsese (esse projeto tenta recuperar importantes obras de diversos países). Trata-se de um filme que é baseado num livro com o mesmo nome, escrito por Adwaita Mallabarman.


A viúva Basanti ajuda uma mulher com seu filho, que fora sequestrada logo após o seu casamento e agora procurava na vila de pescadores o seu marido perdido há dez anos. Mas este fica louco após o sequestro de sua esposa. Quando num momento de lucidez consegue reconhecê-la, eles são atacados e mortos, deixando o filho Ananta órfão. 


Comovida com a sorte de Ananta, Basanti cuida da criança por algum tempo, mas a pressão de sua família a obriga a abandonar o órfão que se muda para uma cidade maior a fim de lutar por sua sobrevivência. Mas a pressão sobre os moradores da vila tem origem na exploração de ricos agiotas de classes mais ricas, que não se importam em roubar até o último utensílio e a rede de pesca dos humildes habitantes.


Basanti se revolta com as muitas injustiças, mas num mundo onde a exploração está naturalizada é difícil convencer outras pessoas a se rebelarem. Além de tudo isso tem os traidores pobres, como o tio de Basandi. "Ele se vendeu. Os ricos o transformaram em ator, e lhe deram medalhas". Ao ouvir estas palavras de um velho da comunidade, o tio dá uma risada e se retira (lembrei-me do nosso pobre Brasil). 


Mas o filme termina com uma ideia de esperança. Uma criança corre alegremente tocando uma corneta, conseguindo arrancar um sorriso de Basanti que encontrava-se à beira da morte. Uma alegoria da Índia e de Bangladesh que se erguem das cinzas deixadas pelo Império Britânico? Quem saberá?

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Poeta de três mundos

"Eu sou o homem cuja vida e alma são tortura". Assim começa o belo filme do diretor soviético, armênio nascido na Geórgia, Sergei Parajanov, "A cor das romãs" (1969), que conta aspectos da vida do poeta e trovador Harutyun Sayatyan, mais conhecido como Sayat Nova. Nova escreveu em três línguas, georgiano, armênio e azeri turco, as línguas faladas pelos países da antiga União Soviética, hoje independentes, Geórgia, Armênia e Azerbaijão, países localizados na região que se estende do Mar Negro até o Mar Cáspio. Alguns dos poemas são escritos parcialmente em georgiano e parcialmente em armênio, o levando a utilizar para tais criações dois diferentes alfabetos. Seria uma tentativa de unificação da cultura da região ou apenas uma oportunidade de ser apreciado por mais pessoas? Seja como tenha sido, na época da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), Nova era exaltado como um armênio da Geórgia que produziu a maior parte de suas obras no Arzebaijão, um unificador.

"Como multidão de vítimas ingênuas, viemos deste mundo até você como uma oferta".


Cena do filme A cor das romãs.

Estrelado pela atriz Sofiko Chiaureli e pelo ator Melkon Alekyan, entre outros, "The color of pomegranates" ou "A cor das romãs" apresenta diversas imagens impressionantes e, segundo muitos críticos, trata-se de um tipo de criação artística transcendente ao próprio cinema, estando presentes a música, o teatro, a poesia e as artes plásticas. Parece um teatro cujos cenários constituídos de cores e tonalidades bastante fortes tentam expressar algumas ideias do grande poeta do século XVIII. 

"Muitos me precederam com poucos conhecimentos sobre este mundo incrível, eles se extinguiram e expiraram antes de mim".


Cena do filme A cor das romãs.

Ao longo do filme são apresentados a rosa descolorida no galho seco, os livros secando no teto do mosteiro, as uvas amassadas pelos pés que também ajudam a lavar os tapetes, as mulheres que produzem com os bilros, o tingimento das linhas de lã, o galo degolado e o sangue que marca a testa da criança, o são Jorge que passa a cavalo, o banho na sauna e os tamancos coloridos.

"Das cores e cromos desse mundo, minha infância criou a lira de um poeta e a ofereceu a mim".


Cena do filme A cor das romãs.

Também são apresentados a caveira com o capacete, as dançarinas com as suas longas tranças que segue o ritmo do tambor, o crucifixo com pedras preciosas, o domador de leões, os cavaleiros em torno do castelo, a múmia colorida sob chuva de cinzas, o batizado da pequena criança, os monges de preto que rezam, as orações no velório e as crianças que cantam.

"Procurávamos um refúgio para o nosso amor, mas em vez disso o caminho nos conduziu à terra dos mortos".


Cena do filme A cor das romãs.

O patriarca com seu corpo inerte e o túmulo rodeados de ovelhas, os tapetes com a figura de Jesus morto, o pão e o algodão trabalhado pela família, os músicos com os seus instrumentos simples, os trabalhadores que ceifam no alto do prédio e as ovelhas preparadas para a imolação, a morte do cordeiro sacrificial e a preparação do alimento.

"Pedi uma mortalha para embrulhar o cadáver, mas eles só mostraram as convulsões frenéticas de seus corpos vivos".


Cena do filme A cor das romãs.

O cavalo que parte sozinho, o centauro e a catedral em ruínas, os músicos e suas kamanchas, a janela entre os blocos de pedra, a mulher com a coroa de rosas e folhas, o anjo que flutua e o corpo que jaz entre as velas, o poeta morto.

"No vale ensolarado dos anos longínquos, vivem meus anseios, meus amores e minha infância".


Cena do filme A cor das romãs.

Para encerrar essas rápidas linhas sobre o filme de Parajanov e a poesia de Nova, apresenta-se uma tradução que fizemos para o português de uma tradução realizada para o inglês do poema “Tamam Ashkharh Ptut Eka” ("Eu viajei pelo mundo") de Sayat Nova, retirado do sítio 100years100facts.com. A tradução inglesa foi feita a partir de uma coleção de Der Hovanessian e Margossian. Como se trata da tradução de uma tradução, é possível que a ideia do artista não tenha sido perfeitamente capturada. De qualquer maneira, espera-se que se consiga ao menos um vislumbre geral do pensamento do autor. Segue o poema.

Eu viajei pelo mundo:

Eu viajei pelo mundo, até mesmo à Etiópia
mas eu nunca vi nada que se comparasse
com seus olhos olhando para trás.
Use pano mulambo, use tecido de ouro,
suas roupas se tornam preciosas
quando você anda com elas, coquete.
Quem vê você diz: Olhe isso!

Você é uma joia, um rubi.
Quem tem você é feliz.
Quem te acha nunca sente pena
de quem te perdeu.
Bendito sejam vossos pais, que vos deram à luz.
A morte chega sempre cedo.
Mas se é para viver, que seja
como artista,
um artista que pinta você.

Você é uma joia desde o nascimento,
uma gema em roupas de ouro.
Seu cabelo uma auréola,
seus olhos de cristal dourado.
Suas pálpebras na forma
da roda do mundo
feitas pelo mais maravilhoso oleiro.
Seus cílios, flechas e facas.

Seu rosto, eu deveria descrever apenas
em francês e em persa:
O sol e a lua.
O lápis falha
na mão do artista.
Quando você se senta você é um pássaro da amoreira,
quando você se levanta
um corcel de conto de fadas.

Eu não sou mais aquele Sayat-Nova
que costumava descansar nas areias.
Quais são os seus desejos?
Você é fogo, vestida de fogo.
Que fogo posso resistir?
Eu quero entender o coração
batendo dentro de você.
Mas você cobriu-o
com bordados indianos, tapeçarias de ouro e de prata,
meu coquete, meu flerte.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

No lápis da vida

Encontra-se aberta na Pinacoteca do Estado do Ceará a exposição - No lápis da vida não tem borracha - com vários desenho do artista plástico Aldemir Martins. Aldemir nasceu há cem anos, em 1922, na cidade de Aurora, no Ceará, tendo participado de diversas exposições no Brasil e no exterior. Ganhou vários prêmios por seu trabalho, incluindo entre outros, a Medalha de Ouro no V Salão Nacional de Arte Moderna no Rio de Janeiro e o Prêmio "Presidente Dei Consigli dei Ministeri", na XXVII Bienal de Veneza, ambos em 1956. Em 2005 o Museu de Arte Moderna de São Paulo inaugurou uma importante retrospectiva de sua obra "Sete décadas de sucessos artísticos" - 1945 - 2005, onde a obra do artista é revisitada. Abaixo, algumas das gravuras expostas na Pinacoteca do Ceará.






sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Cem anos da partida de Proust

Hoje, 18 de novembro de 2022, faz exatamente cem anos da morte de Marcel Proust. Para lembrar essa data importante da literatura universal, reproduzo abaixo um pequeno trecho de "A prisioneira", quinta parte de sua obra "Em busca do tempo perdido". Esse texto refere-se ao momento da morte do escritor Bergotte, que pode ser vista como a morte de qualquer grande escritor ou de qualquer grande artista. É uma bela reflexão.

"Nova crise prostrou-o, ele rolou do canapé ao chão, acorreram todos os visitantes e guardas. Estava morto. Morto para sempre? Quem o poderá dizer? Certo, as experiências espíritas não fornecem a prova de que a alma subsista, como também não a fornecem os dogmas da religião. O que se diz é que tudo se passa em nossa vida como se nela entrássemos com o fardo de obrigações contraídas numa vida anterior; não existe razão alguma em nossas condições de vida nesta terra para que nos julguemos obrigados a praticar o bem, a ser delicados, mesmo a ser corteses, nem tampouco para que o artista culto se julgue obrigado a recomeçar vinte vezes um trabalho, cuja admiração que suscitará pouco lhe há de importar ao corpo comido pelos vermes, como o pedaço de parede amarelo pintado com tanta ciência e requinte por um artista desconhecido para sempre e apenas identificado pelo nome de Vermeer. Todas essas obrigações que não encontram sanção na vida presente parecem pertencer a um mundo diferente, fundado na bondade, no escrúpulo, no sacrifício, mundo diferente deste e do qual saímos para nascer nesta terra, antes talvez de voltar a viver nele sob o império dessas leis ignotas a que obedecemos porque trazíamos em nós o seu ensinamento, sem saber que aí as traçara – essas leis de que nos aproxima todo labor profundo da inteligência e que são invisíveis, nem sempre, aliás! – para os tolos. De sorte que não há inverossimilhança na ideia de não ter Bergotte morrido para sempre. Enterraram-no, mas durante toda a noite fúnebre, nas vitrinas iluminadas, os seus livros, dispostos três a três, velavam como anjos de asas espalmadas e pareciam, para aquele que já não existia, o símbolo da sua ressurreição."

Certamente, muitas centenas de anos ainda estarão por vir, trazendo justas homenagens a Marcel Proust e à sua obra.